Cultura de Segurança em Saúde

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Nosso último post foi sobre segurança do paciente, incluindo algumas noções de classificação, relativas àquilo que pode acontecer com o paciente e à gravidade de tais ocorrências. Muita gente se surpreendeu com a quantidade de coisas para manejar. Na parte final, falamos da biblioteca Notify à luz do desafio de homogeneizar práticas e linguagens à despeito das diferenças socioculturais. Biovigilância, enfim, mais um desses campos multidisciplinares em que entendimentos culturais contam e muito.

Hoje, a ideia é lançar luz sobre um outro sentido de cultura, igualmente importante, mas bastante distinto. Trata-se da Cultura de Segurança em Saúde. Vamos nessa.

Quando falamos “cultura de segurança em saúde” estamos a nos referir aos valores, crenças, normas e procedimentos relacionados à segurança do paciente, compartilhados entre os membros de uma organização, unidade ou equipe. De acordo com o pessoal da ProQualis, ela integra “o DNA das organizações de alta confiabilidade”.

A ideia é que organizações de saúde são “sistemas complexos”, um conceito popular em física, engenharia e negócios, que trata de unidades de funcionamento (um avião, uma empresa, uma cultura biológica) onde é necessário que muitas partes interajam com precisão, para que o resultado esperado aconteça. Conforme elas abraçam essa ideia e passam a lidar com os processos internos com a consciência de sua complexidade, tornam-se organizações de alta confiabilidade, o que na prática quer dizer, organizações onde a taxa de coisas dando errado é bem menor do que a média.

Ainda segundo a ProQualis (mérito da dra. Claudia Tartaglia Reis, que redigiu a aula linkada acima e a disponibilizou no slideshare), enquanto organizações de saúde convencionais partem da premissa de que tudo vai dar certo, organizações de alta confiabilidade (essas que abraçam o conceito de complexidade), acreditam que as coisas, mais hora, menos hora, vão dar errado. Por isso, não descuidam.

Outra diferença é que essas organizações põem mais foco na confiabilidade do sistema, em contraste com as organizações convencionais que põem foco total na eficiência. Finalmente, há diferenças na maneira como esses dois tipos de organização lidam com a hierarquia: quanto mais rígida e verticalizada, mais difícil é lidar com a complexidade total.

Uma organização de alta confabilidade depende de uma forte cultura de segurança pois a complexidade significa que cada um deve ser capaz de agir sozinho, à luz de melhores práticas. Quando essa cultura viceja, há um forte aumento na motivação para realizar ações centradas no paciente (lembra dessa definição?), bem como para a adoção de protocolos de redução de risco, em todas as ações clínicas, inclusive aquelas que envolvem transplante, esse nosso assunto de todo dia.

A cultura de segurança possui cinco componentes principais:

Estabelecer confiança é o processo de criar “rapport” com o/a paciente, de modo que a relação flua. Isso é muito importante para o sucesso de qualquer procedimento médico e, em certo sentido, é uma derivação da medicina centrada no paciente. Há também um segundo sentido, que é o do estabelecimento de confiança entre os membros da própria equipe clínica, que não pode ser desprezado. Um dos diferenciais dos melhores hospitais do mundo em relação à concorrência é o nível elevado de confiança — assim como respeito, profissionalismo e mesmo admiração — no corpo clínico. Isto faz todos darem o melhor de si.

Estabelecer responsabilização é o processo de determinar de quem é a responsabilidade pelas diferentes decisões envolvidas no transplante, bem como de quem é a responsabilidade quando alguma coisa dá errado. Este último ponto é dos mais delicados da biovigilância e é conhecido como “imputabilidade”. Mais para frente iremos desenvolvê-lo.

Identificar condições inseguras é o processo de avaliação de todas as etapas que vão da retirada do órgão ou tecido até o seu transplante no receptor, com foco na mitigação de riscos. Pode-se dizer que este processo é a contrapartida prática à análise matemático-computacional de riscos, que permite a mitigação, numa esfera mais abstrata.

Fortalecer sistemas significa o reforço das práticas e treinamentos baseados em protocolos. Um exemplo, é a prática de notificação dos eventos adversos por todos os hospitais transplantadores do país; outro é o uso da biblioteca Notify para classificar esses eventos de maneira adequada. Há dezenas de sistemas e “sub-sistemas” clínicos e todos eles precisam estar na “ponta da língua e na ponta dos dedos” de médicos e enfermeiros envolvidos com transplantes.

Melhorar continuamente os aspectos de segurança é uma ideia derivada da área de negócios, onde se firmou o conceito de evolução continuada. Na prática, ela traduz o uso de métricas claras de desempenho para a contínua avaliação e correção de desvios do trajeto em direção ao estado da arte em transplantes e outros procedimentos médicos.

Avançando um pouco mais no assunto, o Ministério da Saúde assinala que a cultura de segurança inclui a necessidade de prover aprendizado, recursos e estrutura para a efetivação da segurança, ou seja, há um componente pedagógico que não pode ser esquecido, afinal, cultura só existe pelo compartilhamento de práticas e noções.

Cultura de Segurança no Processo de Doação e Transplante de Órgãos e Tecidos

Apesar do aspecto predominantemente qualitativos destes processos, existe um questionário-padrão para acessar a cultura da segurança nos hospitais.

Isso não significa que devamos parar nele. A ideia é que o mesmo represente nosso ponto de partida. Por exemplo, conforme o quadro acima explicita, a razão de todo o processo é a implantação dos órgãos ou tecidos em quem precisa. Ainda assim, é preciso ter muita delicadeza e técnica no manejo das outras etapas do processo. Uma que não discutimos até aqui é a da relação com a família de pacientes com morte encefálica. A grande verdade é que o transplante é fortemente dependente da atitude de quem se dispõe a doar órgãos para salvar vidas. Simples assim. Porém, não é fácil para a família do doador lidar com a situação. Mais para frente falaremos disso.

Cria-se assim um primeiro desafio fortemente dependente de cultura de segurança, o qual envolve todos os mecanismos necessários para provar que a extração de órgãos é absolutamente independente do óbito em si (sim, no calor do momento, muitas famílias ficam inseguras sobre esse ponto, por menos razoável que seja assumir o contrário), além de protocolos de comunicação e muito mais.

Este é seguido por uma etapa ainda mais técnica, que é a do armazenamento do órgão doado. Qual recipiente? Em qual temperatura? Por quanto tempo? Pode balançar? Pode levar em avião? Pode colocar celular em cima da caixa? As perguntas são várias e os métodos de conhecimento disso tudo nem sempre são evidentes. Fique conosco que em breve você conhecerá as respostas.

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Sistema Nacional de Biovigilância

Este blog é sobre o importante tema da Biovigilância. Não perca suas atualizações, as quais irão cobrir temas fundamentais para quem lida com transplantes!