O sonho da Aninha e o nosso

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Ana Luiza, a “tia Aninha”, tinha construído sua fama na zona leste da cidade. Professora lendária, conseguia fazer até as crianças mais malcriadas aprenderem a escrever. Gostava de dizer que o déficit de atenção tinha sido inventado na escola “de elite” do outro lado da rua.

Falava isso rindo, mas sem deboche. Aliás, por ocasião da efeméride em que a escola passou a adotar seu nome (“maior aventura burocrática desde a proclamação da república”, nas palavras do Pablo, diretor), Dona Altemira contou que o passatempo preferido da ex-colega era assistir a saída dos pequenos do outro lado da rua e tentar identificar seus futuros pupilos, bem antes de serem convidados a darem o fora da pequena Suíça, como o nome da escola particular parecia sugerir.

Se tinha um grande defeito, era o mau humor nas segundas-feiras; outro, mais desculpável, era não gostar de ditado. Seu Júlio, o marido, dizia que uma coisa era em função da outra e que ela deveria passar os ditados para terça ou qualquer outro dia. Aninha achava que não era bem isso; parecia sentir um…presságio.

Um dia, enquanto passava o ditado, sentiu uma pontada no peito que lhe fez pensar na lança dos cavaleiros medievais com que fechara a semana anterior. Presságio, pensou.

_Pessoal, a tia já vem.

Não veio. A ambulância chegou rasgando e, como num piscar de olhos, lá estava a Aninha vivendo em hospital — e o pior, em choque, após receber a notícia mais importante da vida: seu coração estava com os dias contados.

Barra pesada chega rápido e toma conta, tipo cruzado de armadura.

_Como assim, doutor? Não há nada que possamos fazer?

_Há sim, Ana, mas você vai precisar de um transplante cardíaco.

A notícia foi recebida com apreensão, mas também com uma dose de esperança. E foi assim, com estes sentimentos a tiracolo, que passou os três anos mais difíceis de sua vida.

Não pense que ela entregou os pontos. Nada disso. Segurou a onda como poucas. Não gostava de reclamar e quando o assunto era a frequência das internações, dizia que estava batendo ponto duplo para ganhar um extra ou que era a maior turista de hospital de toda Itaquera. Ah, Aninha, que figura.

Apesar disso tudo, fato é que se sentia cada vez mais debilitada e com medo. Por fim, teve que parar de trabalhar e até de sair de casa. Sua esperança estava na rapa do tacho.

Apesar de dizer o contrário, não acreditava que fosse ver chegar a sua vez de receber o precioso órgão, que às vezes desenhava na prova das meninas que faziam letra bonita. Mas eis que numa manhã de segunda, seu celular finalmente tocou: era do hospital, chegara a sua vez; #vidanova.

A instrução dada era clara: correr para o hospital. E assim foi ela, em companhia do Júlio. Chegou falante como nunca.

Deitada sobre a maca, percorreu os corredores que levam ao centro cirúrgico como quem vai para o abraço. Tinha consciência dos riscos da cirurgia, mas isso lhe parecia secundário, tantas eram as perspectivas para o pós-operatório.

O palco do grande evento tinha ares futuristas, com muitas luzes e uma parafernália de dar inveja a muito artista de primeiro escalão. A equipe médica sorria em sincronia, por trás das máscaras. Aninha, tinha certeza que eram do back vocal.

Sobre a banca imponente, o coração doado fazia o papel de popstar misterioso. A caixa recém colocada sobre a bancada era o seu camarim móvel. E tudo o que se pensava ali era no momento em que tomaria o palco com sua pulsação indefectível.

Foi nesse clima apoteótico que o dito cujo saiu dos bastidores. Lento, desvitalizado, com cara de poucos amigos. Um coração que parecia sofrer por amor, enquanto revelava a terrível notícia: uma falha no seu armazenamento havia reduzido a perfusão a ponto de torná-lo impróprio para o transplante.

O ar seco da sala subitamente ganhou a densidade da Serra do Mar.

Aninha segurava as lágrimas. Só queria sair dali e esquecer.

Dispensou calmante, compaixão, tudo. Levantou da maca repelindo contatos e, com o olhar mais firme do que nunca, voltou à recepção onde reencontrou o marido:

_Maldita hora em que não passei o ditado para terça.

O sistema de divulgação de informações da rede de profissionais de biovigilância foi pensado para quem se interessa por transplante, segurança do paciente, biovigilância e tudo mais que tem a ver com esse tema. Se lhe parece interessante, mas você não tem certeza se é para você, não se preocupe: é normal. No próximo post vamos explicar direitinho que assunto é esse e também porque acreditamos se tratar de um dos mais quentes do momento. Siga-nos para não perder.

E até já.

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