Por que, afinal, algumas pessoas doam órgãos e outras não?

--

A morte de Gugu Liberato chocou o Brasil. Apesar de estar há anos fora do circuito principal da televisão e de morar fora do país, Gugu era — e ainda é — um dos mais amados apresentadores de toda a história da nossa televisão.

Além do carisma e do fato de ter ajudado muita gente do meio e de fora dele, Gugu era doador de órgãos. A família do apresentador não titubeou: além de respeitar a vontade do artista, fez um esforcinho a mais para publicizar a ação, na expectativa de influenciar outras famílias. Uma das manchetes que saíram à época era de que os órgãos de Gugu beneficiariam mais de cinquenta pessoas, nos Estados Unidos, país onde veio a óbito.

A atitude de Gugu e sua família trouxe de volta ao debate público uma antiga pergunta: afinal, o que empata a doação de órgãos? Uma reportagem de 2019 da Agência Brasil esclarece:

“A negativa familiar é um dos principais motivos para que um órgão não seja doado no Brasil. No ano passado, 43% das famílias, segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) recusaram a doação de órgãos de seus parentes, após a morte encefálica comprovada”. Essa atitude é, à primeira vista irracional, pois, conforme esclareceu o Dr. Valter Duro Garcia, editor do Registro Brasileiro de Transplantes, para a EBC: “há mais possibilidade de alguém estar na fila para receber um órgão do que de ser doador”. Como ele bem colocou “transplante é uma troca”.

Não duvido que você entendeu, mas, só por desencargo de consciência, perceba que isso não só quer dizer que faltam órgãos (leia-se gente morre ou, por vezes, segue vivendo com dificuldade) porque a doação é negada, como significa que a mesma pessoa que nega que os órgãos de um familiar sejam doados pode se ver na situação de precisar de um transplante para sobreviver e não o conseguir em função do tipo de atitude que propaga.

Então, deveríamos concluir que doares e familiares que concordam com este são pessoas boas, enquanto quem não doa ou, ainda, familiares que rechaçam a realização do desejo de seus parentes são pessoas más? Não, isso representaria uma simplificação atroz.

A principal razão para as famílias negarem a liberação dos órgãos para doação é o medo de que tal atitude tenha algum tipo de papel na precipitação da morte do paciente. A negação não é motivada por mesquinhez, mas por amor — eis porque é tão difícil de ser revertida.

Na mesma reportagem, o Dr. Garcia é esclarecedor: “para ser doador, tem que ter morte encefálica, que é quando há uma lesão grave na cabeça [o que pode acontecer] após se levar um tiro, ter um acidente de trânsito, principalmente por moto. Ter um tumor no cérebro ou meningite, por exemplo (…). Quando o cérebro para de funcionar, a pessoa para de respirar, e só continua respirando por meio artificial. Nesse momento em que ocorre a morte encefálica é que os médicos procuram a família para pedir autorização para que os órgãos dessa pessoa possam ser doados”.

O grande problema é que esse conceito é complexo para quem não é da área e, principalmente, está fragilizado pelo drama da perda de um ente querido.

Uma pesquisadora que se debruçou sobre o tema foi Gabriela Camponogara Rossato, da Universidade Federal de Santa Maria. Conforme declarou em 2017: “todo esse processo, do adoecimento agudo, passando pelo diagnóstico da morte encefálica até o pedido de doação, dura, em média, de cinco a sete dias. As pessoas não conseguem pensar nessa questão, e algumas relataram que se arrependeram de não ter doado”. Ou seja, o fator “calor do momento” conta muito para o alto número de negativas. Se o fenômeno lhe parece enigmático, não se sinta só.

Na verdade, a recusa em doar lembra uma série de problemas de…economia. Isso mesmo, você não leu errado.

Quem desvendou a sua lógica foi o psicólogo Daniel Kahneman, prêmio Nobel de economia de 2002, pela chamada teoria prospectiva dos processos decisórios sob incerteza.

Segundo ele e seu parceiro de pesquisa Amos Tversky (que só não ganhou o Nobel junto porque faleceu antes), o que acontece é que a nossa aversão ao risco é dinâmica, variando de acordo com os nossos sentimento e com a urgência da necessidade de dar uma resposta (além de fatores como idade do tomador da decisão, horário do dia em que decide, alimentação, número de horas de sono e outras coisas mais).

Nas situações que devemos decidir algo que envolve a representação de uma experiência negativa, como a imagem corporal do ente querido falecido, nossa coragem (o que os economistas chamam de “apetite ao risco”) decai. Para piorar, entra em jogo um fenômeno psicológico de nome autoexplicativo: negação. Veja, por mais que o familiar saiba que a morte é irreversível, a assinatura na autorização para a extração dos órgãos significa, do ponto de vista simbólico, que o familiar abre mão de todas as esperanças da situação ser revertida.

É óbvio que essas chances jamais existiram e que o desejo de que as coisas fossem de outro modo não é capaz de reverter este fato. Do mesmo modo, é óbvio que a única questão prática é a de abrir ou não um rol de esperanças para outras pessoas, como a Aninha do nosso primeiro post. Mas, convenhamos, seria uma ilusão assumir que as pessoas têm sempre o nível de clareza e distanciamento para pensar assim, quando o bicho pega. Não cabe apontar o dedo, mas entender. E construir discursos sociais que nos aproximem de países como os Estados Unidos (um país fortemente religioso, diga-se de passagem), Espanha ou França, onde a taxa per capita de doadores é cerca de duas vezes a nossa.

Mais para frente vamos discutir o tipo de estratégia que poderia ser adotada para reduzir a resistência das famílias. Não perca!!!

--

--

Sistema Nacional de Biovigilância

Este blog é sobre o importante tema da Biovigilância. Não perca suas atualizações, as quais irão cobrir temas fundamentais para quem lida com transplantes!